terça-feira, 9 de agosto de 2011

HUGO MASAO, A VIDA COMO ARTE

Dentre as séries facebookianas publicadas por Abilio Guerra a mais interessante é O homem é bom! São dezoito histórias sintéticas, que não ultrapassam os quinhentos caracteres. Ao contrário do que sugere o título, o autor não tenta demonstrar a bondade inata do homem, mas o quanto esta é convencionada social e historicamente. A graça e leveza que marca os textos são obtidas com uma técnica estilística curiosa, onde conceitos opostos se apaziguam mutuamente. O piegas se vê amainado pela ironia, o grandiloquente é rebaixado pelo prosaico, a tristeza é acalentada pela alegria, o fato sublunar troca de posição com o simbólico, e assim por diante. Nada é exatamente o que parece a primeira vista.

Das dezoito histórias, duas me interessam em especial, pois jogam luz sobre um fato real do qual conheço detalhes. A primeira, a história 4, lembra as desventuras do bispo Sardinha, comido pelos índios caetés nos primórdios da ocupação portuguesa. Segundo Guerra, o religioso “era bom o suficiente para ter seu espírito incorporado no ritual antropofágico”. A segunda, a história 12, conta como – de forma temerária, pois lhe custou a vida – o trapaceiro Arnaud du Tilh assumiu a identidade do desaparecido camponês Martin Guerre, tomando-lhe a posse das propriedades e do leito conjugal, para felicidade de Bertrande de Rols, a esposa desconsolada.

As duas histórias reais, ocorridas com uma distância temporal de menos de uma década em pleno renascimento europeu, nos demonstram o quanto é deslizante o conceito de bondade humana. O ato da antropofagia pode ser explicado, a partir de julgamentos opostos, como incorporação respeitosa das virtudes do inimigo ou ato abominável de comer carne humana. E o ato de tomar a identidade alheia pode ser punido socialmente por roubar os bens materiais e morais de outrem ou ser louvado privadamente por cauterizar a dor da ausência do ser amado. O primeiro ato é visceral e exuberante; o segundo é filosófico e recatado. Quando sintetizados, resultam em uma epifania, a incorporação do outro e transcência do eu.

Esta longa explanação inicial tem como objetivo dar sentido elevado para um fato que ganhou as manchetes dos jornais sensacionalistas há alguns anos. Um jovem sansei, Hugo Masao, internado em uma clínica psiquiátrica, matou seu companheiro de quarto, Oto Zweig, e assumiu desde então seu nome e personalidade. Neste ato radical de transformação psíquica e espiritual, o público – incentivado por uma imprensa tacanha, a serviço do balcão de negócios mais sórdido – viu apenas crueldade e insanidade. De forma radicalmente distinta, eu – que conheço a história de perto, ao ponto de saber que a picareta das manchetes é uma invenção – aponto para a capacidade genial de reinvenção pessoal.

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